Para refletir sobre nossas crianças
SALETE MARISA DIAN BIAGIONI
Como nasce uma família?
De qual família estamos falando?
A família constituída?
A família assumida?
Como é a família da pós-contemporaneidade?
Como é a criança gerada nessa família?
Como é a escola pós-contemporânea?
Quais são os limites desse contexto?
Para tentarmos responder a todas essas perguntas, a única referência que temos é um olhar para o novo indefinível-indefectível e uma reflexão nesse momento.
A forma como os vínculos entre as pessoas estão sendo construídos na atualidade e a velocidade com que estes rapidamente se transformam, representam elementos geradores de tensões graves, depressões e muita ansiedade (as doenças psíquicas da modernidade).
Bauman (2004) discute as relações na atualidade ressaltando a ambivalência explicita na busca dos relacionamentos em todos os níveis. Ele chamou esse contexto atual de “tempos líquidos”, “líquido cenário da vida moderna”, “líquido mundo moderno”, “relacionamentos do bolso”, em que tudo se desfaz rapidamente para se refazer sem nenhuma perspectiva de permanência. De uma maneira ambivalente, as pessoas desejam laços fortes, mas procuram mantê-los frouxos pelo temor de se verem obrigadas a suportar tensões e encargos que possam aprisioná-las. Assim, as pessoas, nas famílias, nos grupos, ficam semijuntas, o que torna mais fácil “diluir as relações para que se possa consumi-las”.
A conveniência da rede conexão que permite deletar o outro apenas mudando o cenário (status no “face”), com uma nova busca se iniciando para novas conexões e ampliando a rede. Na “modernidade líquida”, não se fazem vínculos, apenas conexões. Essas vivências nas relações, em todos os níveis, não trazem satisfação duradoura nem garantia contra ansiedade e a solidão. A facilidade do desengajamento (a qualquer hora) não reduz os riscos de sofrimento no convívio, apenas os distribuem de modo diferente, junto com as ansiedades que provocam. Nesses “tempos líquidos”, o desejo de viver as experiências se faz por meio de uma busca de satisfação instantânea, que não exige grandes esforços, mas almeja resultados garantidos.
Mesmo com todo esse aparato pós-contemporâneo, nada, ainda, conseguiu substituir ou reproduzir o que ocorre a partir do relacionamento entre duas ou mais pessoas. É necessário que os relacionamentos se abram para a Alteridade nas formas de relações, ou seja, que se abram para o respeito à individualidade de cada um. A Alteridade expressa a qualidade ou o estado do que é o outro ou do que é diferente – o Eu na sua forma individual só pode existir através de um contato com o Outro.
Somos seres sociais e precisamos do outro humano para nos relacionar, pois vivemos agregados em grupos (família, escola, comunidades, etc.). Na verdade, estamos falando do relacionamento psíquico constituído por uma série de dados subjetivos e objetivos que em parte são de natureza muito heterogênea. Sempre que tratamos do relacionamento psíquico, pressupomos a consciência, o “estar presente”, o “saber de si”. Não existe possibilidade de relacionamento entre dois seres humanos, se ambos entrarem em estado de inconsciência. Na prática, quando isso não acontece, o indivíduo terá um conhecimento incompleto tanto de si mesmo, como do outro; por isso, também conhece de modo insuficiente os motivos do outro e os seus.
Na criança a consciência emerge das profundezas da vida psíquica inconsciente, formando no começo como que ilhas isoladas, as quais aos poucos, se reúnem em um “continente”, para formar uma consciência coerente. O processo gradativo do desenvolvimento significa a ampliação da consciência.
A ausência de regras claras, a incoerência, a displicência e a negligência no ambiente familiar, tende a gerar indivíduos totalmente desprovidos de recursos de conduta social aceitável. A deformação da personalidade, seja por uma educação errada ou pela influência oculta proveniente de problemas que os pais tenham negligenciado em si mesmos, acarreta a falta de identidade e de referências que os filhos precisam para viver em sociedade. Essa não é uma tarefa para as escolas. Essa tarefa é exclusiva da família.
A desarmonia latente entre os pais, uma preocupação secreta, desejos secretos e reprimidos, tudo isso produz na criança um estado emocional, com sinais perfeitamente reconhecíveis, que vão penetrando na psique infantil, que tende a reproduzir as mesmas atitudes e, portanto, as mesmas reações aos estímulos do meio ambiente. Se nós adultos nos mostramos sensíveis às influências do meio ambiente, o que dizer então de uma criança cuja psique é mole e moldável como cera. O pai e a mãe gravam o sinete de sua personalidade fundo na psique da criança; e mais fundo quanto mais sensível e impressionável ela for. Tudo é retratado inconscientemente na criança, mesmo coisas das quais nunca se falou. A criança imita os gestos; e, assim como os gestos dos pais são a expressão de seu estado emocional, estes gestos que ela imita vão produzindo aos poucos um estado emocional semelhante dentro dela. O reflexo da dinâmica familiar projetado na alma do ser e do existir contribui com os subsídios para a questão de determinação do destino pela influência do meio ambiente familiar. Entretanto, sabemos, que a nossa psique também nos contempla com a possibilidade das rupturas com as doenças que nos são implantadas por esse universo através do ganho de consciência e do amadurecimento psicológico.
Infelizmente, sabemos também, a educação moderna vem produzindo alguns monstros. Isso ocorre naqueles casos em que os pais, tomados por um fanatismo doentio, no esforço em dar aos filhos “o melhor” de si próprios e/ou de “viver exclusivamente para eles”. Esse ideal apregoado tão freqüentemente é um complicador para o desenvolvimento dos pais enquanto papéis sociais, e faz com que os mesmos imponham aos filhos o que eles próprios consideram “o melhor” para si. São os extremos: ou os filhos são abandonados ou engolidos. Mas isso que chamam de melhor, consiste na realidade de algo que os pais negligenciaram em grau extremo em si mesmos. Os filhos são estimulados para aquelas realizações que os pais jamais conseguiram; a eles são impostas as ambições que os pais nunca realizaram. Tais métodos ideais ou permissivos demais produzem monstruosidades na educação.
Ninguém pode educar para a personalidade-identidade se não tiver personalidade-identidade. E não é a criança, mas sim o adulto quem pode atingir a personalidade-identidade como o fruto amadurecido pelo esforço da vida orientada para esse fim. Atingir a esse estado (personalidade-identidade) não é tarefa insignificante, mas é o melhor desenvolvimento possível da totalidade de um indivíduo determinado, o que já sabemos estar no caminho contrário da ambivalência da contemporaneidade. Sabemos também, que não é possível calcular o numero de condições que devem ser satisfeitas para se conseguir isso. Requer-se para tanto a vida inteira de uma pessoa, em todos os seus aspectos biológicos, sociais e psíquicos. A personalidade-identidade é a obra que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita possível, a tudo o que existe de universal, e tudo isso aliado à máxima liberdade de decisão própria. Educar alguém para que seja assim não é uma tarefa simples. Trata-se sem dúvida da maior tarefa que o nosso tempo propôs a si mesmo.
A personalidade-identidade se desenvolve no decorrer da vida, a partir de germes, cuja interpretação é difícil ou até impossível; somente pela nossa ação é que se torna manifesto quem somos de verdade. Somos como o Sol que alimenta a Terra e produz tudo o que há de belo, de estranho e de mau; somos também como as mães que carregam no seio a felicidade desconhecida e o sofrimento. De início não sabemos o que está contido em nós, que feitos sublimes ou que crimes, que espécie de bem ou mal. Somente o outono revela o que a primavera produziu, e somente a tarde manifesta o que a manhã iniciou.
Assim como a criança precisa desenvolver-se para ser educada, da mesma forma a personalidade deve primeiramente desabrochar, antes de ser submetida a todo tipo de estimulação desconectada com as suas reais necessidades. E aqui começa o perigo (nesses “tempos líquidos”, o desejo de viver as experiências se faz por meio de uma busca de satisfação instantânea, que não exige grandes esforços, mas almeja resultados garantidos). Precisamos lidar com algo de imprevisível, pois não sabemos como e em que sentido se desenvolverá a personalidade em formação. Nesse ponto, a família tem uma função decisiva. Estamos falando de uma família que funcione como um grupo integrado e integrador, onde cada um cumpra o seu papel da melhor forma possível. Não estamos falando exclusivamente da família constituída, porque sabemos que os laços de sangue não são suficientes para a formação de uma família na acepção mais ampla do seu sentido. Estamos falando de “uma família”, aquela que se desenvolve a partir do respeito, do diálogo e dos laços de afeto. Aquela que respeita os seus limites e os limites do outro. Aquela que representa uma presença na vida da pessoa por constituir todo o seu referencial mais pleno e íntegro de inteireza e coerência.
A expressão: “Muitos são chamados, e poucos os escolhidos” nunca foi tão válida como agora, momento em que estamos tão perdidos no que se refere à educação dos filhos. O desenvolvimento de um ser e com isso a sua personalidade, desde o seu começo até a consciência completa, é um carisma e ao mesmo tempo uma maldição: como primeira conseqüência, o indivíduo de maneira consciente e inevitável, se separa da grande massa, que é indeterminada e inconsciente. Isto significa o isolamento. Nada impede isto, nem a adaptação bem sucedida, nem mesmo a incorporação sem o menor atrito ao meio ambiente, nem a família, nem a sociedade, nem a posição social. O desenvolvimento da personalidade é de tamanha felicidade que se deve pagar por ela um preço elevado. Esse é um processo individual, mas a família pode e deve representar um ancoradouro das demandas internas e externas.
A criança começa sua vida psíquica sob a influência da mãe e da família. À medida que o amadurecimento se processa, alarga-se o horizonte e também a esfera de todo tipo de influência. A esperança e a intenção visam alargar a esfera pessoal de poder e de posse, e o desejo tenta abranger o mundo em amplidão crescente. A vontade do indivíduo se identifica cada vez mais com as finalidades oferecidas pela natureza dos motivos inconscientes. Até certo ponto a pessoa começa a insuflar sua vida nas coisas, até o ponto em que elas finalmente começam também a viver e expandir-se, ultrapassando seus próprios limites. As mães se sentem ultrapassadas pelos filhos, os homens por suas criações; aquilo que se chamou para a vida, inicialmente com muito custo, com o máximo esforço, agora já não pode ser contido. De início era paixão, depois se tornou obrigação e por fim vem a ser um peso insuportável, uma espécie de vampiro que suga a vida de seu criador. O meio da vida é um tempo de desenvolvimento máximo, quando a pessoa ainda está trabalhando e operando com toda sua força e todo o seu querer. Mas nesse momento tem início o entardecer, e começa a segunda metade da vida. A paixão muda de aspecto e passa a ser dever, o querer transforma-se inexoravelmente em obrigação; as voltas da caminhada que antes estavam cheias de surpresas e descobertas, agora nada mais são do que rotinas.
O indivíduo consegue conhecer suas peculiaridades por meio das considerações críticas de si próprio e de seu destino. Mas esses conhecimentos não lhe são dados de graça. Chegamos a tais conhecimentos por abalos violentos, as chamadas crises.
Quais os significados das crises em nossas vidas?
São importantíssimas, porque a partir delas ou em função delas, as transformações acontecem e a consciência se amplia, já que no início de tudo, ter consciência é a base, é saber de si e das suas demandas (quem eu sou – o que eu quero para mim). É pensar, é querer, é sentir. É ser protagonista da sua história. É assumir realmente os mais variados papéis: filho (a), mãe, pai, profissional, mas principalmente “ser você mesmo”. É antes de tudo saber responder algumas questões:
Por que eu quero ser mãe?
O que significa ser pai?
Por que eu quero ser um (a) profissional?
Qual é o meu lugar em tudo isso?
Quando soubermos quais são os nossos limites saberemos exatamente o limite do outro, conseqüentemente saberemos educar uma criança para a vida real.
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